terça-feira, 31 de agosto de 2010

Reparos



Algumas coisas quando se quebram são fáceis de consertar:
uma xícara lascada uma estatueta de gesso um sapato velho uma receita que desanda ou uma amizade arruinada. Ainda que guardem as marcas do remendo, é possível que essas marcas tenham um certo charme como algumas cicatrizes. Mas experimente consertar um poema que estragou.

Ana Martins Marques

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

O Outro



O outro é o que ouve teu tom mais doce,

Que tem tuas mãos mais macias e tuas
costas, que ele as tem em sonhos cegos.
O outro é que te faz rir transbordar.
Quem te deixa arreganhada e branda. Aquele que te faz derreter em transes. O outro não pede licença na porta. Irrompe como voz que as palavras mastiga e mói os ossos de colibri que trinca.
O outro não sou eu não me cabe sê- lo.
O outro é Prometeu?
Só se for estrangeiro.
Luíz Fernando Ramos
foto Dorival Moreira

sábado, 21 de agosto de 2010

A Verdadeira Arte de Viajar


A gente deve sair à rua
como quem foge de casa,
Como se estivessem abertos diante de nós
todos os caminhos do mundo.
Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali...
Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando!

Mário Quintana

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

“Para aprender da pedra"




A educação pela pedra

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições de pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.


João Cabral de Melo Neto

domingo, 15 de agosto de 2010

Aforismos sem juízo




Família s.f., -
Grupo de pessoas que tem pressa em ver defeitos
e impaciência para aceitar qualidades.






danielpiza@grupoestado.com.br

domingo, 8 de agosto de 2010

presente do presente…

Talvez fosse melhor dizer
que os tempos são: o presente do passado;
o presente do presente; o presente do futuro.
E eles estão na alma; não o vejo alhures.
O presente do passado é a memória,
o presente do presente é a percepção,
o presente do futuro é a expectativa.

Santo Agostinho

sábado, 7 de agosto de 2010

O Brinco


Pode ser que como as estrelas
as coisas estejam separadas
por pequenos intervalos de tempo
pode ser que as nossas mãos
de um dia para o outro
deixem de caber
umas dentro das outras
pode ser que no caminho para o cinema
eu perca uma de minhas ideias
preferidas
e pode ser
que já na volta
eu me tenha resignado
alegremente
a essa perda
pode ser
que o meu reflexo sujo
no vidro da lanchonete
seja uma imagem de mim
mais exata
do que esta fotografia
mais exata do que a lembrança
que tem de mim
uma antiga colega de colégio
mais exata do que a ideia
que eu mesma
agora tenho de mim
e portanto pode ser
que a moça cansada
de olhos tristes
que trabalha na lanchonete
tenha de mim uma imagem
mais fiel
do que qualquer outra pessoa
pode ser que um gesto Qum jeito de dobrar
os lábios
te devolva
subitamente
toda a infância
do mesmo modo que uma xícara
pode valer uma viagem
e uma cadeira
pode equivaler a uma cidade
mas um cachorro estirado ao sol não é o sol
e uma quarta-feira não pode ser o mesmo que
uma vida inteira
pode ser
meu querido
que esquecendo em sua cama
meu brinco esquerdo
eu te obrigue mais tarde
a pensar em mim
ao menos por um momento
ao recolher o pequeno círculo
de prata
cujo peso
o frio
você agora sente nas mãos
como se fosse
(mas ó tão inexato)
o meu amor.
Ana Martins Marques

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

A cena da carta





Por quê as pessoas não escrevem mais cartas. Elas simplesmente não querem tirar o tempo, que acaba se mostrando muito tempo, porque não tem confiança? E as cartas parecem tão... bem, unilaterais. (...) Cartas são as vezes um modo de manter alguém à distância. Mas com esse propósito é preciso escrever muitas cartas _ pelo menos uma, às vezes duas, por dia. Se escrevo a você, não preciso encontrar você. Tocar você. Pôr a língua em sua pele. (...) Então basta de passado, que ele se dissolva ao pálido luar, evapore como as notas agudas de um perfume. Sem esquecimento não pode haver felicidade, nem alegria, nem esperança, nem orgulho nem presente. Sem esquecimento não poderia haver desespero, nem ansiedade, nem objeção, nem saudade, nem futuro. Não revele nenhum sentimento que não queira que seja revelado aos outros . Mas, muito provavelmente você os revelará. Impulsos irresistíveis!

Susan Sontag






quarta-feira, 4 de agosto de 2010



A paixão é um fio de chuva
em vidro de janela.
Na vida de João Rosa,
janelas se sucederam,
paixões escoaram,
sem rosto,
nem rasto."

Mia Couto

domingo, 1 de agosto de 2010




“Há sempre países mágicos que fazem parte da nossa infância. Os que nos vêm à memória e que visitamos quando dormimos e sonhamos. São tão maravilhosos à noite como quando éramos crianças. Se alguma vez voltamos para os ver, desvanecem-se. Mas à noite não perdem nada da antiga beleza se tivermos a sorte de sonhar com eles.”

Ernest Hemingway in Verdade Ao Amanhecer

foto: Tracy Raver e Kelley Ryden



"Para atravessar agosto ter um amor seria importante, mas se você não conseguiu, se a vida não deu, ou ele partiu- sem o menor pudor, invente um. Pode ser Natália Lage, Antonio Banderas, Sharon Stone, Robocop, o carteiro, a caixa do banco, o seu dentista. Remoto ou acessível, que você possa pensar nesse amor nas noites de agosto, viajar por ilhas do Pacífico Sul, Grécia, Cancún ou Miami, ao gosto do freguês. Que se possa sonhar, isso é que conta, com mãos dadas, suspiros, juras, projetos, abraços no convés à lua cheia, brilhos na costa ao longe. E beijos, muitos. Bem molhados.Não lembrar dos que se foram, não desejar o que não se tem e talvez nem se terá, não discutir, nem vingar-se , e temperar tudo isso com chás, de preferência ingleses, cristais de gengibre, gotas de codeína, se a barra pesar, vinhos, conhaques-tudo isso ajuda a atravessar agosto. Controlar o excesso de informações para que as desgraças sociais ou pessoais não dêem a impressão de serem maiores do que são."

Caio Fernando Abreu